segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Entrevista com Juliana Iootty
Editora-adjunta de internacional de O Globo
Concedida pessoalmente
Dia 23 de outubro de 2007


- Qual é a estrutura da editoria de Inter de O Globo? Editor-chefe, editores-assistentes, redatores, pauteiros...

A editora-chefe, que é Sandra Cohen; editora-adjunta, que sou eu; o editor-assistente, que é o Flavio Lino; e Danilo, Cristina, Leonardo, Paulo e Thiago. Nós somos oito. São 3 editores e 5 redatores. Os editores se revezam na função de pauteiros. Eu, por exemplo, hoje cheguei de manhã pra fazer a pauta. Chego cedo, vejo as agências de notícias, sites, liga, telefona, fala com correspondentes, vê qual é a pauta do correspondente, vê quais são os assuntos do dia. Enfim, a gente mesmo faz, os editores mesmo que fazem a pauta diariamente.

- Você acha que esse número é grande ou pequeno na comparação com outras editorias, comparando com o número de páginas também?

Eu acho pequeno. Mas aí na verdade, se a gente for falar em tamanho, você vai ter que pegar primeiro o número de páginas. Eu acho que a internacional - no Brasil, não só aqui n’O Globo -, ela é subdimensionada. Antigamente o jornal era maior. Eu acho que os jornais estão diminuindo de tamanho. Depois do 11 de setembro a gente teve uma reversão disso. Mudou propriamente - não foi só o atentado, foi tudo o que veio depois: guerras, invasões, houve uma mudança na política externa toda, que veio nos dar mais espaço. Mas isso, infelizmente, foi reduzido novamente. É uma pena. Então eu acho que pra esse número de páginas, a gente tem um número bastante razoável. Mas as crises do mundo são incontroláveis, né? Várias vezes a gente precisa de ajuda de outras editorias quando uma crise emerge, uma ou outra. A gente acaba precisando de ajuda de outras editorias. Mas comparando com as outras, o número é pequeno porque o mundo é grande.

- Como funciona o trabalho dos redatores? A editoria de Inter tem essa particularidade que é ter redatores e não ter repórteres, que são os correspondentes.

Eu sempre digo isso quando alguém pergunta. Houve uma época - há uns 20 anos, mais ou menos - que o redator de internacional era aquela figura que se assemelhava muito ao tradutor, porque você tinha uma cobertura internacional que não era tão crítica, talvez. E o correspondente não. O correspondente sempre foi um repórter, um repórter em posto avançado. Mas você tinha a figura do redator que era muito parecida com a do tradutor, na verdade. Então o cara pegava o telex e praticamente traduzia. Hoje em dia, a gente não tem isso. Todos os nossos redatores têm o perfil de repórter. Já foram e continuam sendo repórteres de alguma forma. Hoje em dia, são enviados pra coberturas internacionais. Aqui, no último ano nós mandamos pra Venezuela, pra Bolívia, pra Colômbia, pro Equador. Eles são absolutamente capazes de fazer grandes coberturas. E no dia a dia - você tem, por exemplo, crises como a da Turquia e do Iraque -, não é possível mais que o redator pegue uma nota de agência e traduza. A não ser que a gente esteja usando um serviço de Washington Post, New York Times, El País, que aí sim a gente está usando a tradução, mas por um motivo deliberado: a gente acha que aquela matéria é bacana e tem que ser traduzida integralmente. O cara vai ter o input de várias fontes. Ele vai pegar texto de agência, ele vai olhar os sites, ele às vezes liga pra um analista, se ele achar que é o caso, e ele constrói, com a capacidade crítica dele, com o texto. Porque a gente delibera como vai ser aquilo. A gente não quer falar só que a Turquia está aprovando no seu parlamento uma autorização para a invasão do Iraque. Tem que mostrar que, de alguma forma, aquilo está ligado a relações com os Estados Unidos, com a aprovação pelo congresso americano daquela lei que declara genocídio o que aconteceu na Armênia e as relações muito delicadas ali na Otan. Então você não pode simplesmente pegar um texto, traduzir e colocar isso ali. Então os redatores, cada vez mais, têm um perfil de repórter e todos eles uma bagagem - muitos fazem mestrado em Relações Internacionais. Então é um sujeito que tem, digamos assim, um arcabouço muito bacana. Não é tradutor de jeito nenhum.

- Sobre esse trabalho de contextualização, você acha que, cada vez mais, os jornais impressos se vêem obrigados a isso? Muitas vezes o leitor têm acesso fácil ao conteúdo das agências pela Internet. A partir de quando os jornais tomaram a direção da análise, em lugar da reportagem mais factual?

Claro. Eu não poderia te dar uma data, mas com a chegada da Internet e mesmo com a TV, já tinha mudado um pouco. Mas isso é um processo em andamento. É empírico. A gente, mesmo, tá fazendo isso todos os dias, da maneira que a gente vai julgando melhor. Mas eu acho que a Internet foi definitivamente uma coisa que mudou isso, porque se você chega no dia seguinte, o jornal, na porta do leitor, com a mesma notícia que já saiu na Internet, no rádio e na TV, qual é a sua colaboração ali? Eu acho que, cada vez mais, o jornal está se tornando um espaço de reflexão. Claro que você vai dar a notícia. Morreram cinco na Faixa de Gaza? Morreram cinco na Faixa de Gaza. Mas quais são as indicações disso pro futuro... E é um dilema, porque ao mesmo tempo em que o jornal se torna um espaço de reflexão, o jornal não tem o mesmo espaço que a Internet tem disponível. O jornal tem um espaço limitado, então agente tem que escolher. E a nossa escolha tá cada vez mais pra parte da análise e ela está sempre embutida na notícia. Nunca mais, eu acho, vai poder ser a notícia pura, factual, porque isso você já viu desde que você acordou, quando você tá indo pro trabalho, você ouve no seu rádio, você vê na TV à noite, se você tiver Internet no seu local de trabalho ou na faculdade, você vai ter visto isso. Então o que adianta você ler jornal no dia seguinte? É a minha avaliação - e é a avaliação de muita gente -, eu acho que o jornal, cada vez mais, tem que ter esse diferencial, de ser um espaço de reflexão sobre a notícia e não só de dar a notícia, simplesmente. Mas isso é um desafio em andamento. Nós estamos aprendendo a fazer isso. Quando eu cheguei, no jornalismo ainda se trabalhava com máquina de escrever. Anos depois, tinha a "sala da Internet", que tinha fila, tinha senha. Então isso ainda está acontecendo, é uma geração que ainda está passando por esse processo.

- Quantos correspondentes fixos O Globo tem hoje? Quais são e em que cidades eles ficam baseados?

Nos Estados Unidos, a Marília Martins, em Nova York, e o José Meirelles Passos, em Washington. Na América Latina, a Janaína Figueiredo, em Buenos Aires, que se tornou um pouco uma correspondente regional. Ela foi deslocada várias vezes pra outras coberturas. Na Europa: a Débora Berlinck, em Paris; Fernando Duarte, em Londres; e a gente tem como colaboradoras a Graça Magalhães-Rüether, em Berlim; a Vivian Oswald, em Moscou. Na Europa é isso. Na África a gente tem a Mônica Yanakiew, no Marrocos, uma colaboradora esporádica - a gente nem usa muito. Na Ásia, a gente tem o Gilberto Scofield Jr., em Pequim. Em Israel, a gente também tem uma colaboradora, que é a Renata Malkes.

- No caso que você citou da Janaína Figueiredo, que, como você citou, é muitas vezes deslocada pra outros países da região: do que depende vocês deslocarem ela em vez de usarem um material de agência ou apurar da redação?

Por proximidade geopolítica, países como Argentina, Chile, Peru, Colômbia e Bolívia - principalmente com essa "onda vermelha" que atingiu a América Latina recentemente -, isso tem influência direta na gente. Você vê a questão da Petrobras. Posso ficar aqui a tarde inteira explicando qual é o impacto que isso tem, não só na economia, como nos aspectos da política nacional. Então qualquer um desses eventos: se o Evo Morales vai decretar a nacionalização dos poços de gás, se o Chávez vai decretar que a PDVSA vai fazer não sei o quê, se o Peru resolve alguma coisa na fronteira... Esse tipo de coisa é muito importante pra gente, porque reflete diretamente. Na eleição presidencial argentina, por exemplo, a gente tá fazendo uma série de uma semana - é raríssimo a gente fazer isso. Mas tem essa importância na política nacional. A gente acha que é melhor deslocar a Janaína, porque você tem ali um diferencial. Agência manda o que quer, da maneira o que quer. Você, com repórter, tem acesso às suas próprias fontes, às suas próprias matérias, às suas próprias sacadas. No ano passado, quando a Janaina engravidou, nós recorremos muito a mandar os nossos próprios redatores também.

- Sobre essa questão da visão que têm as agências e a visão que teria um correspondente, vocês buscam ter uma visão nacional? Porque as agências, muitas vezes, têm uma visão própria dos fatos.

Claro. Eu diria que as agências têm uma pauta própria. Essa visão é genérica, porque as agências são uma espécie de "pool" - ela tem que atender a gente, o cara em Moscou e em Londres. Então é claro que a gente também tem que ter a nossa própria visão sobre esse tipo de assunto. Acho que essa é a diferença.

- Em 2006, O Globo contratou uma correspondente em Bombaim, na Índia, a Florência Costa. Como funcionou essa decisão por Bombaim? Ela já morava lá ou foi daqui?

A Florência é a nossa correspondente. Na verdade, ela é uma colaboradora fixa, que está em processo de se tornar uma correspondente. A Índia é um país emergente, importante, como a China. Acho que O Globo, hoje em dia, tem o maior corpo de correspondentes entre os jornais brasileiros.

- Como são escolhidas as cidades onde se estabelecem os correspondentes? Além dos custos, é claro, o que define a base dos correspondentes?

Primeiro pela importância geopolítica. Você não pode prescindir de um correspondente em Washington, que é o centro do poder mundial. Nova York, porque reverbera na economia e na cultura - já que esses correspondentes não trabalham só pra gente; eles trabalham pra todo o jornal, pra Cultura, pra Economia, enfim. Você também não pode prescindir de Buenos Aires, esse tipo de coisa. Agora, existem outros casos, como é o caso da Florência Costa, em que ela foi pra Bombaim - ela é uma jornalista conhecida -, ela foi pra Bombaim e nós propusemos a ela de se tornar nossa correspondente. Em Israel, por exemplo, quando a gente sente a necessidade de um colaborador, a gente entra em contato com jornalistas conhecidos que estão lá. A gente escolhe por isso: porque são centros potencialmente geradores de notícias importantes. No caso de Bombaim, por exemplo, foi isso. Foi uma oportunidade que surgiu. Mas isso significa um custo, então não é como se ela estivesse ali e nós resolvêssemos aproveitar. Existe um compromisso e o jornal acredita que Bombaim - a Índia, por ser um país emergente -, é importante que a gente tenha alguém lá. E jornalista brasileiro é uma coisa que tem em qualquer lugar, então a gente seleciona à medida que a gente acredita que aquele lugar é importante pro jornal.

- Esses correspondentes trabalham para outros veículos nos países onde eles estão baseados? Eles são bolsistas ou são fixos?

Não. Os colaboradores sim, mas os correspondentes não, eles são exclusivos. Eles recebem salário, mesmo, são fixos. O José Meirelles Passos está em Washington há 20 anos; a Marília está em Nova York há um ano, mas a anterior ficou quatro ou cinco; a Janaína está lá há mais ou menos 10 anos. Não é um esquema como é o da Folha, por exemplo. Na minha opinião, não tem como você formar um corpo de correspondentes, que conhecem o lugar onde eles estão baseados, em seis meses. Quando você começa a chegar perto, tá na hora de ir embora. Aqui a gente tem um corpo de colaboradores fixos, que recebem salário, e colaboradores que recebem por matéria.

- Nas últimas décadas, principalmente a partir dos anos 1990 e mais intensamente nos últimos anos, o corte de custos, o downsizing, tomou contas das redações brasileiras e atingiu em cheio a figura do correspondente. Muitos jornais perderam jornalistas no exterior. Como isso afetou a cobertura de assuntos internacionais d’O Globo?

Na verdade, O Globo não passou por isso. A gente teve um movimento inverso. A gente mudou a forma de tratar esse tipo de colaborador. O número de correspondentes fixos não diminuiu. Pelo contrário. Não são todos assalariados, mas a gente conseguiu, de alguma forma, ampliar o número de pessoas lá fora. Conosco foi exatamente o contrário. A gente aumentou ao invés de diminuir e isso agrega qualidade.

- O que o jornal – e a editoria, especificamente – perde com isso?

Perdem muito. Perdem notícia, perdem material de análise. Agora, por exemplo, com os incêndios na Califórnia: eu posso usar o material de agência, é claro. Mas se você for um correspondente na Califórnia, você vai tentar achar um personagem, uma fonte exclusiva pra uma entrevista. A agência manda pronto, eu não interajo com ela, entende? Eu não tenho como pautar uma agência. Eu não posso dizer: "Ah, eu queria muito saber qual é a diferença entre o que aconteceu no Katrina e o que está acontecendo agora". Só se a agência me mandar isso. Eu não posso pautar. O correspondente eu posso. Eu tive essa sacada: tem um monte de branco na história e no Katrina tinha um monte de negro, e aqui tem gente que tem dinheiro, antes não tinha... Eu pensei aqui, mas eu não posso ligar e pedir pra agência fazer. Pro correspondente eu posso. Eu ligo e digo: "Olha, tem essa matéria pra fazer". A gente faz muito isso, às vezes. Por exemplo, listas, números, infográficos, mapas. A gente pega o material de agência, reúne esses dados e deixa o correspondente solto pra fazer essas coisas. "Esquece a numerária e vai atrás de três personagens". Essa é a vantagem: é a sua visão, do jornal, sobre determinado assunto. É independência.

- E na Califórnia vocês não têm correspondente. Então como vocês resolveram isso?

É uma boa pergunta. Hoje, por exemplo, a gente está com a numerária toda, feita por aqui, por um redator que vai reunir quantos mil hectares foram queimados e outros números. E a gente vai pedir pra nossa correspondente em Nova York pra ver se consegue contatar consulado, pra ver como está a situação dos brasileiros. O Boa Viagem [caderno de turismo d'O Globo] deve trazer um material pra gente, pra ver se tem cancelamento de viagem.

- Que agências de notícias o jornal assina e em que idiomas?

EFE em espanhol, AP em inglês, Reuters em inglês e AFP em espanhol. Serviços a gente tem do New York Times, Washington Post, El País, The Independent e Los Angeles Times. Basicamente isso.

- Por que essas agências especificamente?

São as maiores, mesmo. A gente só não tem a ANSA, porque a ANSA agora tá fornecendo de graça pela Internet, aí às vezes a gente usa, às vezes não.

- Vocês recebem o conteúdo das agências com uma visão crítica ou a credibilidade desses serviços faz com que eles sejam aceitos como informações de qualidade?

Claro, a gente tem visão crítica do que a gente recebe. E não é nada maniqueísta do tipo "agências imperialistas". Não é isso. Tudo é apurado. Isso é uma mania, um tique profissional. Tudo você recebe e duvida de tudo. Claro que no dia que você tem alguma coisa acontecendo em Peshawar ou em Karachi, eu vou acreditar no conteúdo das agências. Eu não posso ficar ligando pra Karachi, pra saber quantas pessoas morreram. Uma agência diz que morreram 10, outra dá que morreram 20 e outra dá que morreram 21. EU tento tirar uma média disso. Você não tem como checar o tempo todo, principalmente porque você dedica mais o seu tempo de acordo com a importância que você tá dando ao assunto e de acordo com a capacidade que você tem de checar as coisas. O que a gente faz muitas vezes é agregar valor ao conteúdo da agência. Por exemplo, a gente tem na Venezuela alguma coisa acontecendo, a gente quer ouvir o que um analista quer dizer. Ou a Janaína faz de Buenos Aires ou a gente faz por aqui. Por isso que eu digo que é importante os redatores terem uma visão crítica, porque as agências têm sua maneira própria de ler o mundo. A gente tem que duvidar as vezes e pensar que isso que eles tão dizendo não é bem assim.

- Falando um pouco sobre o jornal, qual é a média diária de páginas que a editoria internacional tem?

Em geral, duas ou duas e meia. Hoje a gente pode falar que são três, porque a gente está numa crise. Esse ganho de espaço é uma negociação aqui na reunião de pauta de manhã.

- E no domingo? A editoria tem mais espaço?

No domingo, três páginas e meia. E quando eu digo três e meia, eu digo três e meia limpas pra texto.

- No domingo, o conteúdo é diferente? Foge da cobertura cotidiana?

É diferente, porque o domingo é o dia de "coroação" dessa reflexão. É bom você ter um domingo mais ou menos quente. Já aconteceu isso inúmeras vezes: a gente estava com um domingo programado pra fazer a abertura sobre o Zimbábue e a crise pela qual o Mugabe está passando não sei quantos anos depois da revolução. Aí durante a semana explode aquela merda lá em Mianmar. Fica muito estranho você abrir com o Zimbábue quando tem monge tomando porrada na rua. Então na sexta-feira a gente decidiu isso. Então o domingo é o dia em que você pode fazer uma reflexão sobre o que aconteceu na semana ou então buscar assuntos que não têm espaço dia de semana ou são idéias dos correspondentes. Mas se tem alguma coisa muito quente acontecendo durante a semana, a tendência é que você vá abordar aquele assunto no domingo.

- Queria entender um pouco como é definida a pauta. Como funcionam as decisões e o cotidiano de um dia de trabalho, até o fechamento?

Cheguei hoje às 10h da manhã. A rotina é essa: você chega, lê os jornais - você e os seus concorrentes, pra ver o que você não deu, o que você deu melhor, o que você falhou. Você dá uma geral na mídia - isso porque eu já venho pra cá ouvindo rádio. Isso é dever de ofício, mesmo. Eu venho ouvindo pra ver se você tem alguma pauta que já esteja em andamento. Aí, aqui, você abre o seu computador, dá uma olhada nas agências de notícias, vê o que elas estão dando, olha os principais sites, entra no New York Times, Washington Post, BBC, CNN (de vez em quando), El Pais (porque a gente tem o serviço), Times Online de Londres, Independent... Enfim, dá uma varrida geral nas agências de notícias e nos sites, e começa a definir a pauta. Isso é pra saber qual é o assunto mais quente do dia. Se não tiver nenhum assunto quente, saber no que você pode investir. "Hoje tá um dia morno, não tem nada. Então por que a gente não pega esse assunto?". Fala com os correspondentes, eles dizem o que estão pensando em fazer hoje e amanhã. Aí você constrói a pauta, os assuntos divididos por redator. Mas acontece que, ao longo do dia, as coisas mudam. No dia do atentado à Benazir Bhutto, por exemplo, ela não era a abertura da seção. A abertura da seção era a Turquia, se eu não me engano. Mas aí ela estava lá em carreata - linda e loura - e... Já eram 18h e pouco. A página fecha lá pelas 22h e pouco, 22h20. Mas a gente começa a fechar as coisas lá pelas 21h. Mas a gente já virou edição aqui faltando 20 minutos pras 22h. Saddam Hussein vai ser enforcado. Ninguém sabia. Mas aí estoura e fecha atrasado.

- Quando existe um assunto muito importante que vai acontecer depois do fechamento, como é o caso do Saddam Hussein, como vocês fazem?

Foi meia-noite e pouco. A gente teve uma trabalheira. Porque, na verdade, a gente sabia que ele não ia ser enforcado antes do primeiro clichê. O primeiro clichê fecha às 22h25, mais ou menos. A gente sabia que, até essa hora, ele não teria sido enforcado. O que a gente fez foi uma matéria que seria derrubada no segundo clichê, falando sobre a expectativa, comportamento, como as pessoas veriam, o que seria. Mas aí a gente já tava paralelamente preparando uma edição para o enforcamento, para depois que ele fosse enforcado. Entraria um perfil dele, notícia do enforcamento. Então o primeiro clichê a gente fechou com uma coisa que a gente tinha como coringa, mas que ia cair. No segundo clichê já entra a edição fechadinha. É o caos quando isso acontece, mas acontece.

- Voltando à pauta, como são as reuniões de pauta?

A primeira reunião de pauta acontece de manhã, com todos os editores: um editor-executivo e os editores ou editores-adjuntos de cada editoria. A gente vai e vende. A primeira página já vai decidindo o que vai fazer. E às 17h tem uma outra reunião com todos os editores. Aí se define como vai fechar o jornal, até porque mudam os assuntos. Então às vezes o que você vendeu de manhã não é mais o que você vende à tarde. Hoje, mesmo, eu vendi - a gente ia abrir com Argentina, uma série. Mas aí quando eu voltei pro meu computador, a Califórnia tava pegando fogo muito mais do que ontem. Aí eu fui lá dentro e falei: "Olha, a gente vai abrir com outra coisa". É dinâmico, não é nada fechado.

- Queria fazer uma pergunta ampla, mas que é importante: o que define o que é noticiável no Jornalismo Internacional?

É uma questão de experiência, de bom senso, mas sempre partindo de uma premissa básica - e não acadêmica: notícia é o incomum. Sempre. O que é notícia numa comunidade normal? "Eu fui à padaria e comprei três pães"? Não. "Eu fui à padaria e quebrei o pé". É um exemplo: notícia é o incomum. Notícia é o inesperado, é o que não é normal. Vou ser bem sincera. Por que quando morrem 15 na Índia não é notícia, mas quando morre um em Winsconsin pode ser? Porque é mais incomum. Infelizmente. Não estou falando sobre o papel da imprensa na banalização da morte, da violência. Isso é uma questão teórica. Isso é outra coisa. Agora, tecnicamente, é muito mais comum você ter 50 mortos no Iraque depois que a guerra começou do que você ter 30 mortos na Virginia Tech por um pistoleiro louco. A verdade é que se a gente fosse anunciar todos os atentados do Iraque, a gente pegaria um grande body count. A gente não teria mais nada. Cinqüenta hoje, 60 amanhã. É claro, é óbvio que se explode uma bomba no Iraque numa fila em que estavam trabalhadores ou crianças, não importam se são cinco ou se são 10. É a natureza. Não é como se existisse uma tabela e se não passou dos 50 não é notícia. Não é isso. Tudo depende das circunstâncias. Mas é isso. É bom senso, é um pouco de cinismo também. Não sejamos idealistas - tanto assim. Eu sou. Infelizmente, é uma indústria. Mas é o que eu estou te dizendo. O papel da mídia na banalização da violência, isso é outra coisa, é outra discussão. Na minha cabeça de editora, a coisa é pragmática e diária. Agora, posso te dizer que não é uma tabela. Podem morrer 500 em Bangladesh hoje numa enchente e não ser notícia e podem morrer dois em Bangladesh amanhã numa situação absurda e ser manchete do jornal. Depende do que está acontecendo.

- Eu me lembro da situação, em agosto deste ano, em que existiam 6 trabalhadores presos numa mina em Utah, nos Estados Unidos. Duas semanas depois, 300 mineiros ficaram presos na China. Em alguns veículos, a cobertura dos americanos durou vários dias, com suíte atrás de suíte, e na China, o espaço foi muito pequeno.

Mas aí, é claro que, se você parar pra pensar: "Estou falando de vidas humanas e isso é trágico em qualquer lugar" - é óbvio, mea culpa. Eu trabalhei na ONU durante cinco anos e briguei muito pra tentar transformar essas coisas em coisas denunciáveis, cada vez mais. É porque as pessoas também não vêem o que não sai nos jornais. Toda semana, 300, 400, 500 mineiros são soterrados. E aquele de Utah, eu lembro que teve uma particularidade, que foi uma coisa irônica horrorosa. Os caras disseram que estava todo mundo vivo, que tinham ouvido pelo rádio. Na verdade estava todo mundo morto. Então tinha um drama humano, que tava acontecendo, que era incomum, por ser num país rico, nos Estados Unidos, por ter tido essa particularidade de eles terem dito pras famílias que estavam todos vivos. As famílias festejaram e não era nada disso. Então tinha um drama pessoal. E é triste não ver isso, mas é verdade. É a mesma máquina do Iraque. Porque, se não, você só vai ler nos jornais esse tipo de notícia. Tragédia, o mundo é feito disso. Infelizmente. O jornalismo, nem tanto. Se a gente só fosse cobrir isso, a gente só faria isso. Agora, não estou dizendo que a imprensa não tem culpa. Tem sim.

- Você adoraria ser idealista e mudar isso tudo?

Mas eu acho que a gente consegue de algumas maneiras. Eu acho que a gente, algumas vezes, consegue fazer isso. Eu acho que você pode, por exemplo, não cumprir isso botando os 300 mineiros chineses em pé de igualdade com os seis americanos. Mas você pode tentar mudar isso como alguns de nós fizemos. Eu, ano passado, fui pra um campo de refugiados da África. Passei dois meses fazendo uma série especial. A outra foi pro Congo fazer a Aids, o outro vai pra não sei aonde, eu acabei de voltar do Curdistão do Irã. Você consegue trazer pra cima alguns assuntos que estão abaixo do solo. Mas isso é um esforço grande. Porque tem grana, tem questões de segurança, tem questões pessoais. Tecnológicas nem tanto. Mesmo nos maiores buracos do mundo, eu tinha Internet, eu me surpreendi, até.

- Por que, na sua opinião, a África figura com tão pouca freqüência no noticiário internacional brasileiro?

Eu poderia ficar cinco dias falando sobre isso. Eu acho que, infelizmente, isso acontece por dois aspectos. Primeiro o que se acha e depois o que é, na verdade. Acho que, infelizmente, a África - não só aqui no Brasil, mas na América Latina e talvez na Ásia também -, ela se tornou sinônimo de um continente povoado apenas por barbárie, matança e doença. E tirando a fome da década de 1970, em Biafra, que aquilo se tornou popular - aquelas crianças famélicas, com aqueles olhos enormes, aquelas cenas tristíssimas. Tirando aquilo ali, eu acho que a África foi caindo num grande esquecimento, como com o Iraque está acontecendo agora. A repetição do mesmo drama. É triste. Agora, isso é um aspecto. O segundo aspecto do primeiro fator é: se você for comparar com a imprensa européia e como ela trata a África. Por que? Porque ela tem uma relação mais próxima. De economia, por ter sido colonizadora. Você tem milhares de imigrantes. No Norte também, mas também em outros lugares. Você tem o Congo Belga; a Etiópia, com a Itália; a Somália, também com a Itália; você tem Ruanda, com a Bélgica. A África negra também tem uma relação com a Europa. O Norte tem muito ali com França e Espanha. De qualquer maneira, não é só uma relação de antiga colônia, como uma relação de presença maciça de imigrantes ali. Então os problemas africanos têm muito mais respeito, porque eles acabam terminando numa horda de ilegais que entram ali, então interessam a eles. Tem empresas, tem parentes, tem famílias. Então tem uma relação muito mais próxima do que a gente tem. Você pode argumentar que a gente tem uma ligação cultural e lingüística com alguns países da África. Temos, claro. E eu acho que é uma falha. Me agrada a maneira como a gente cobre a África? Claro que não. Eu gostaria que fosse muito mais presente. Eu acho que é uma falha. Eu acho que é uma tristeza que a gente não consiga olhar pra África e encontrar nela coisas que sejam de cunho normal, mas eu acho que é isso. Estou sendo pragmática e cínica com você. A África se tornou sinônimo de algo que é a repetição de um mesmo tema, que é a tragédia. Agora, volto a te dizer: eu, ano passado, consegui ir pra lá e o jornal bancou e eu passei dois meses e foi um especial de três ou quatro dias, com quatro, cinco páginas.

- Quem sugeriu essa cobertura?

Eu! Porque eu tinha trabalhado na ONU, tenho contato com essas organizações até hoje, porque a "crise prolongada" - como eles chamam - é um assunto que eu estudo particularmente, é um assunto que me interessa. Então surgiu a oportunidade, com um apoio logístico das Nações Unidas e o jornal pagou a viagem. Foi ótimo. Uma outra menina que foi pro Congo pra fazer um especial sobre a Aids. Agora, a gente tem um projeto em andamento pro ano que vem, que a gente não pode falar, mas que envolve a África também. Então, não é que a gente esteja desatento. Pelo contrário. Aqui só tem gente - eu não gosto desse tipo de definição, "de esquerda" -, mas são humanistas. A gente tenta ir burlando esse tipo de coisa. Mas é isso. Nós não temos essa relação orgânica com a África que as antigas metrópoles têm; a África, infelizmente, se tornou sinônimo de tragédia. Mas a gente vai tentando quebrar ali, na medida do possível e do nosso interesse pessoal, tentando passar no jornal - e, justiça seja feita, o jornal abraçou isso. A gente tenta também subverter.

- Se existisse mais verba e mais espaço no jornal para a editoria internacional, isso seria diferente?

Não. Acho que não. Acho que se a gente tivesse mais verba pra correspondentes hoje - e, volto a dizer, isso não é a minha opinião, é meu parecer técnico -, a gente talvez teria um fixo em Moscou. Eu não vejo hoje a gente tendo um correspondente em Joanesburgo. Nem com mais espaço vejo a África sendo mais coberta. Não. Acho que isso teria que ser uma revolução de mentalidade. Não tem a ver com grana.

- Você acha que a imprensa brasileira é influenciada pela pauta da mídia americana? Isso é um defeito?

Eu acho que é inútil eu dizer que não. Eu não acho que a gente tenha, de maneira alguma, que a gente seja biased, como eles gostam de falar, parcial. De maneira alguma. Se você parar para ver, O Globo é um dos jornais que mais sentaram o sarrafo no Bush. Eu lembro que a rubrica do caderno era "A guerra de Bush", da Guerra do Iraque. Eu acho que a posição é supercrítica. Toda vez que tem alguma coisa que se julga aqui que ele está ultrapassando os limites das liberdades civis, que ele está ultrapassando os limites da lógica, algumas vezes, é denunciado. Mas se você for me perguntar se o jornalismo brasileiro é pautado pelo que acontece nos Estados Unidos: sim. Como tudo no mundo. A gente não pode ignorar e nem deve. A gente nem deve ignorar o país, a potência que ainda rege a política internacional. Não tem como. Seria tolo.

- Se os americanos não estivessem no Iraque, o confronto entre o exército turco e os curdos do norte do país seria notícia com o mesmo destaque que está sendo dado hoje?

Claro que não. Porque essas escaramuças regionais, elas existem há muito mais tempo que a guerra. A batalha ali com os curdos naquela região da Turquia e no Iraque por um Estado nacional precede em muitas décadas a Guerra do Iraque. E nunca foi grande alvo de atenção. O problema é que agora você tem um país conflagrado. O norte, onde fica o Curdistão, é a área mais estável do país e está ameaçando ferrar aquilo ali também. Claro que não teria a mesma dimensão. De jeito nenhum.

- Mas os Estados Unidos ocupando o Iraque chamaram a atenção para aquela região?

Claro.

- De alguma maneira você estudam o interesse do público sobre determinados assuntos? Na hora de fazer a pauta, vocês pensam no que vai interessar mais os leitores?

Claro. O tempo todo. Hoje, por exemplo, a gente ia dar continuidade a essa série da Argentina como abertura. Mas aí você vê a Califórnia, que é um lugar de destino de tantos turistas brasileiros, é o lugar de sonhos de tanta gente. "It never rains in California", não tem isso? Então, é muito mais próximo. Claro. O tempo todo a gente é pautado por isso. Tem dias que a gente deixa de dar alguma coisa que seja muito pesadamente político, intrincado, pra dar um feature sobre "A máfia gera 1,2 bilhão de dólares por ano". Porque aquilo é mais interessante do que se o Bush falou que o escudo de defesa antimísseis pode levar dois meses e um dia a mais do que ele tinha dito antes. Claro. A gente pensa no leitor o tempo todo. Editar, além de escolher, é você colocar o que imprescindível no noticiário e o que desperta a sua atenção, também. Porque você também é leitor. Então é isso. O leitor pauta a gente o tempo todo.

- Um dos aspectos da noticiabilidade é a continuidade: se um assunto está nas páginas de um jornal num dia, ele tem mais chances de ser publicado no dia seguinte. Você acha que a ausência de alguns assuntos e regiões nas pautas das editorias internacionais prejudica essa cobertura?

Uma inércia, claro. Mas não imagine que isso é deliberado. Eu sempre digo isso quando alguém vem aqui ou que eu converso com alguém. Eu já fui e continuo sendo estudante, o tempo todo. Eu lembro de quando eu estava na faculdade. Algumas vezes, a gente tende a achar que existe uma diretriz. "Não se dá África ou se dá África tantos por cento". Não existe diretriz nenhuma. A gente faz jornal errando e acertando todos os dias. Não ache em momento algum que isso é uma coisa deliberada. Isso é uma coisa pautada pelo espaço, pela pressão do que é "imprescindível" dar. E por um fato muito triste, que é isso que a gente estava conversando, que é a África ter se tornado esse sinônimo de tragédia. Mas é o que eu digo: é uma inércia belissimamente rompida uma ou duas ou três ou quatro vezes na sua carreira por pessoas que são preocupadas com isso. O jornalismo não é uma máquina. Ele é feito por gente, por pessoas. A gente, sempre que consegue, rompe isso. Decidir o que é notícia não é uma decisão matemática. É humano. E, por isso, é passível de erro, também. Infelizmente, a África eu acho um grande erro.

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